quarta-feira, 8 de maio de 2013

ARTE E SOCIEDADE



Arte transforma você

Uma pintura pode ser sentida como o amor ou o luto? Pode mudar a vida de alguém? Pode mudar o mundo? A julgar pelos artistas, críticos e estudantes ouvidos neste Caderno G Ideias, as respostas são: sim, sim e sim. A arte resistiu a uma quantidade atordoante de mudanças (o cinema foi uma delas, para ficar num exemplo) e dá sinais de que tem poderes para resistir a outras mais. Além de avaliar o que a arte pode fazer por você, os textos a seguir mostram o que você pode fazer pela arte: buscar entender o que o agrada e o que não o interessa, procurar referências antes de ir a um museu e, mais que tudo, tentar entrar numa exposição com a guarda baixada, pronto para levar um direto de direita.
O esqueleto de um cubo de ferro ocupa um ambiente de paredes pretas na Casa Andrade Muricy. Objetos de metal parecem sair dele, ou entrar nele. É uma explosão, com fragmentos voando para todo lado, ou são nuvens – sendo a leveza que sugerem uma proeza por se tratar de traquitanas com mais de 30 quilos –, ou são morcegos que voam para fora de uma caverna.
Aniele Nascimento
Aniele Nascimento / Ampliar imagem
Hordas de turistas visitam o Louvre todos os dias e ficam em pé diante de um Rembrandt, mas não sentem nada e caminham para a pintura ao lado. Ensinaram a eles que Rembrandt é um mestre, mas eles não conseguem entender por que e, às vezes, até gostariam de entender, mas não têm ferramentas adequadas para apreciar o trabalho. É por isso que as lojas dos museus estão sempre lotadas. Mais importante do que apreender algo abstrato acerca de uma determinada obra, é possuir algum tipo de objeto que eles imaginam ser capaz de validar, de materializar a visita ao museu.
Miguel Nicolau Abib Neto, artista plástico.
Manual
O crítico de arte Benedito Costa montou um guia resumido do que é bom saber para ampliar a experiência de ir a uma exposição. O ponto de partida está aqui – são questões que você pode ter em mente.
1. Quem está expondo ou sendo exposto?
2. Trata-se de uma exposição histórica, uma retrospectiva, a apresentação de um trabalho novo? É uma coletiva de artistas?
3. O artista ou artistas expostos já são conhecidos? Pertencem a um grupo ou movimento?
4. Vou para ver quadros ou posso encontrar esculturas, instalações, vídeos, performances etc.?
5. Terei paciência para filas, para encontrar o inusitado, para não gostar?
6. Quem é o curador?
7. Como a exposição foi montada?
8. O proprietário da coleção é um banco? As obras são do museu? São empréstimos de outros museus? Compõem um acervo único ou estão ali temporariamente?
9. Conheço ou não o que vou ver? Li sobre isso?
10. Estou aberto a inovações ou quero ver o já classificado, ordenado, (parcialmente) resolvido?
11. Consigo estabelecer um diálogo entre o que verei e outras artes, e com minha vida? Com o momento histórico?
12. O artista que vejo pertence a um movimento, tem um discurso próprio? Ele representa o que na história da arte de seu país?
A obra de José Antonio de Lima é parte da exposição (im)permanências, que o museu exibiu até o fim do mês passado, e pode fazer você se sentir bem. Ou mal.
Você também pode não sentir nada e ainda assim se perguntar: “Por quê?”. Por que você não sente nada? A resposta para essa questão sendo o ponto de partida para descobrir que tipo de arte faz a sua cabeça.
“O quanto a arte é poderosa?”, pergunta o historiador Simon Schama na série Power of Art, produzida pela BBC em 2006 e baseada no livro de mesmo nome, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. “Ela pode ser sentida como o amor ou o luto? Pode mudar sua vida? Pode mudar o mundo?”
Schama procurou respostas escrevendo um livrão ilustrado de 500 páginas, além de fazer o roteiro e apresentar os oito episódios da minissérie ainda inédita no Brasil, mas disponível no YouTube sem legendas. E ele encontra argumentos muito bons, com a ajuda de Caravaggio, Picasso, Rothko e outros cinco gênios da pintura.
“A crença apaixonada de Van Gogh era que as pessoas não veriam apenas os seus quadros, mas sentiriam a urgência da vida neles. Que pela força do seu pincel e pelo deslumbre das cores, elas sentiriam aqueles campos, aquelas faces, aquelas flores. O que, de outra maneira, jamais seria possível. Sua arte assumiria o que antes pertencera à religião: apreciação do dom da vida como consolo pela nossa mortalidade”, diz Schama, num texto apaixonado, durante o capítulo dedicado a Vincent van Gogh (1853-1890), pronunciando o “gh” do sobrenome do artista como um erre gutural.
“Trigal com Corvos” tinha efeito incontestável há 120 anos, mas qual é o impacto de um quadro como esse hoje?
“O poder da arte é indiscutível”, diz Benedito Costa, professor e crítico de arte. “Tão grande que resiste e resistiu a outras manifestações culturais instigantes, como o cinema, por exemplo.”
Todos os citados neste texto falaram da capacidade que a arte tem de transformar quem é exposta a ela. Poucos adjetivos serão tão impactantes quanto este: transformadora. É admitir que uma pintura pode, de fato, mudar alguém.
“Creio que ela tenha não apenas o poder de uma representação do eu e do outro, como o poder de transformação do eu e do outro”, diz Costa.
O artista plástico José Antonio de Lima acompanhou a reportagem numa visita à sua exposição. A certa altura, uma professora quis cumprimentá-lo, agradecendo a permissão dada para que crianças cegas tocassem as esculturas – umas feitas de metal, outras, de tecido. Sentir as obras com as mãos torna mais fácil para imaginar formatos e texturas.
Quando alguém comenta a sua obra, Lima ouve com atenção. Ele realmente quer saber o que os outros pensam, diferente do que sugere a visão típica do artista refratário à opinião do público – pense em Nick Nolte vivendo o pintor Lionel Dobie no episódio “Lições de Vida”, no filme Contos de Nova York (1989). Um sujeito capaz de hostilizar até quem compra seus quadros.
Lima não. As interpretações parecem fasciná-lo. “É mesmo?”, diz ele quando alguém aponta para uma pintura dizendo: “Esta é minha favorita”.
Aline de Lima, estudante de Artes Visuais na Universidade Tuiuti, trabalha como guia na Andrade Muricy e orientou uma turma de crianças com deficiência visual, observando como elas reagiam intensamente às obras. Quando tocam uma peça de metal, se ela é pontuda, elas chegam a se encolher e recuar. “E não querem mais tocá-la”, diz Aline.
Nem toda obra é transformadora. Algumas, para usar um termo dito por Lima, são “lúdicas”. De acordo com Costa, “a arte também pode ser apenas um objeto de contemplação. Simplesmente”.
Mariana Leme, artista gráfica com trabalhos publicados em revistas como Bravo! e Arte e Letra: Estórias, põe em questão o fato de se sentir bem ou mal diante de uma obra. “Não acho que essa seja uma questão importante”, diz. “A arte nos permite entender melhor a vida, as coisas, o que quer que seja. E talvez ‘entender’ não seja um bom termo, mas refletir sobre uma época, o papel social de cada um, a questão do trabalho, do trabalho artesanal. Questionar, enfim. Verificar barreiras, desnudar conflitos e ambiguidades mascaradas numa banalização grotesca cotidiana de imagens, pensamentos e (por que não?) formas de vida.”
Mariana deu essa resposta de encerrar qualquer discussão por e-mail. Arte contra o entorpecimento, contra a indiferença. Pessoalmente, ela expõe suas ideias contundentes com uma voz suave e um pouquinho grave. É um contraste. Desenha belissimamente, mas não pensa em seguir carreira como artista. Prefere a crítica.
“A arte é um espaço privilegiado de reflexão, que pode ter caráter estético/plástico ou político, ou histórico – na verdade, as obras de arte que se realizam apresentam todas essas facetas juntas”, diz Mariana.
Para o artista plástico Miguel Nicolau Abib Neto, professor do Centro Europeu, nem todo mundo está sujeito ao poder da arte. “Ele só tem efeito sobre certos indivíduos. Acredito que a arte aciona um mecanismo preexistente que as pessoas carregam dentro de si, seja ele consciente ou inconsciente”, diz.
Ele defende a ideia de que, para apreciar arte, é preciso ser criativo em alguma medida. A escritora Edith Wharton (1862-1937) disse coisa parecida quando escreveu um texto falando que todo mundo pode aprender a ler, mas nem todo mundo tem talento para ler ficção.
A obra depende muito do espectador, afirmou o semiólogo italiano Umberto Eco décadas atrás.
“A arte abre portas: ela permite a injeção de significados em algo que não tem sentido para outras pessoas e é por isso que as pessoas percebem a arte de maneiras diferentes e em camadas diferentes”, diz Abib Neto.
E o artista termina: “É preciso tentar entender por que você não gostou de uma determinada obra de arte. As pessoas não pensam nisso, mas você pode aprender muito sobre o tipo de arte que gosta observando arte que você não gosta, entendendo o que, exatamente, é que o incomoda. Nesse sentido, nenhuma exposição é perda de tempo: você sempre pode aprender alguma coisa sobre o que o interessa.”
O espírito da coisa
Em que espírito alguém deve ir ao museu? Ver uma exposição é para fazer pensar, é escapismo, é entretenimento? Existe algo numa ida ao museu que se compare a uma sessão de cinema com pipoca? Ou tem mais a ver com teatro?
Quando observou crianças passeando pelo museu, o artista plástico José Antonio de Lima percebeu que elas tinham a resposta para algumas dessas perguntas.
As crianças embarcam em qualquer tipo de experiência, têm menos resistência ao que está sendo mostrado e são crianças, enfim. Elas sabem muito pouco sobre tudo e reagem mais instintivamente. “Elas são curiosas e não têm tantos preconceitos como os adultos. Carregam menos bagagem”, diz Lima.
“Talvez a única atitude possível diante da obra de arte seja a de estar desarmado”, diz a artista gráfica Mariana Leme. “Qual o problema de questionar a validade artística das coisas? Ou qualquer outra validade? E a validade de todas as outras imagens/objetos da vida cotidiana? A arte pode ser o lugar da experiência enriquecedora, ‘Os Bichos’, da Lygia Clark, são um ótimo exemplo. Sem contar que as crianças adoram! Abaixo a solenidade, que estamos todos sem saber direito para onde ir.”
A falta de um rumo é estimulante às vezes ou, em outras, parece um muro entre o que foi feito e o público. Quem não é iniciado tem dificuldade de saber como reagir a obras bizarras ou até mesmo às obras-primas.
“Hordas de turistas visitam o Louvre todos os dias e ficam em pé diante de um Rembrandt, mas não sentem nada e caminham para a pintura ao lado”, diz o artista plástico Miguel Nicolau Abib Neto. “Ensinaram a eles que Rembrandt é um mestre, mas eles não conseguem entender por que e, às vezes, até gostariam de entender, mas não têm ferramentas adequadas para apreciar o trabalho. É por isso que as lojas dos museus estão sempre lotadas. Mais importante do que apreender algo abstrato acerca de uma determinada obra, é possuir algum tipo de objeto que eles imaginam ser capaz de validar, de materializar a visita ao museu.”
No Museu Oscar Niemeyer, pelo movimento que se vê nos fins de semana, é razoável supor que o Bosque do Papa atrai mais público do que a exposição dedicada a Poty Lazzarotto (1924-1998). Mas não precisava ser assim.
“Creio que possamos ir ao museu para passear, para emocionarmo-nos, para escapar, para sorrir ou chorar”, resume Benedito Costa, professor e crítico de arte. “Eu nunca vou a uma exposição, mostra, vernissage ou afim com muita expectativa. Espero que o objeto ou objetos que verei me emocione(m). No entanto, há exposições muito específicas, que exigem certo preparo, principalmente para quem não conhece arte. Isso deve ser levado em conta para qualquer exposição. Por isso, a importância de textos informativos, de guias, de esclarecimentos. Quando não conheço o trabalho a ser apreciado, leio sobre ele, procuro conhecer mais, antes de enfrentá-lo.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário